terça-feira, 15 de abril de 2008

A História de João Ninguém

O pequeno relógio de ponteiro na mesa de cabeceira marcava meia-noite, quando João Ninguém, como era a chamado há uns seis meses, se levantou da cama para realizar o ato que achava que nunca realizaria na vida. E com certeza o mais difícil deles. Ele queria que todos estivessem dormindo para não ter motivos para imprevistos. Foi até a cozinha, pegou uma garrafa com água na geladeira, pegou um copo e a despejou nele. Depois que tomou aquela água pura e gelada, se tocou que não tinha havido necessidade de fazê-lo. Para onde estava indo não ia precisar mais daquilo, nem mais de nada daquele lugar.

João abriu a porta de trás da casa que dava para o quintal e um leve ar frio bateu no seu rosto. Ele fechou os olhos por um momento, como se só assim conseguisse saborear completamente aquela brisa noturna. A última brisa noturna que ia sentir. Depois disso pegou um banquinho. Aquele banquinho que tinha sido usado em muitas festas que tiveram naquela casa. E também, apenas para sentar, enquanto João se embebedava toda noite a seis meses. E então seguiu em direção a mangueira. Aquela mangueira que sempre dava frutas doces e saborosas e fazia sombra para seus filhos pudessem brincar riam brincar de carrinho ou de outro tipo de brincadeira de criança. E agora ela ia ter outro propósito. Um que ele achou que ela nunca teria. Ele jurava por Deus que não.

Ele olhou para o Céu que quase não tinha estrelas. E a lua parecia estar escondida em algum lugar daquela imensidão sem fim, pois ele não conseguia ver. E por causa disso a noite parecia estar mais escura. Colocou o banquinho embaixo da corda que ele amarara na árvore um pouco antes de ir dormir e subiu nele. Olhou para o céu mais uma vez, e imaginou se ele iria lá pra cima ou ia descer para ficar junto com o capeta. Achava que seria bem mais fácil ir lá pra baixo mesmo. Colocou a corda entre o pescoço, apertou-a, fechou os olhos e disse: Adeus, mundo Cruel. Chutou o banco, a corda fez força e começou a ferir seu pescoço e a enforcá-lo. João sentia o ar rapidamente abandonar seus pulmões e iniciou uma contorção que na verdade só fazia ajudar a corda apertar mais seu pescoço. O rosto dele estava muito vermelho e seus olhos pareciam que iam explodir a qualquer momento.

Na sua face estava estampado um misto de medo, sofrimento e arrependimento. Mas não havia mais tempo para se arrepender daquele ato insano e doentio. A hora infelizmente já havia passado. E para João só restava morrer logo de uma vez para não sofrer mais. E foi o que aconteceu. Não demorou muito mais que alguns segundos, apesar de que para João demorou bem mais que isso, até que o ar abandonasse completamente seus pulmões e ele apagasse completamente. Mas então, João abriu lentamente os olhos...

Mas não estava mais em sua casa. A corda tinha sumido do seu pescoço, apesar da dor e do vermelhão continuar. E sua casa fora trocada por um campo verde. O céu estava completamente aberto, sem nuvens. Não tinha a mínima noção de onde estava e de quanto tempo estava apagado. Dormindo. Morto? Ele não sabia na verdade qual dessas palavras se encaixava melhor naquela situação. Levantou-se e olhou em volta. Aquele campo verde e plano parecia não ter fim. Nada de montanhas, de rios ou lagos. Ou estradas, Casas. Nada. Só o gramado. Não tinha a mínima idéia para onde ir porque tudo parecia igual. Então achou que aquilo devia ser um sonho. Porque realidade era que não podia ser. Mas não podia estar sonhando. Porque pelo que ele se lembrava, a última coisa que ele fez foi colocar uma corda no pescoço e dar adeus ao mundo. Então, pensando melhor agora, ele só poderia estar morto e aquilo ali só poderia ser o céu, já que aparentemente não parecia ter fogo, nem demoniozinhos com aqueles tridentes para torturá-lo. Mas também não havia anjos. Na verdade não havia ninguém, nem nada. Só aquele verde infinito. Será que aquilo era um lugar especial para os suicidas, ele pensou. Só podia ser. Deus não devia gostar de suicidas então os deixavam aprisionados em um lugar sem fim e sem nada, para sofrer para o resto da eternidade. Mas ai, João ouviu uma voz clamando seu nome.

“JOÃO, JOÃO,”. A voz tinha um tom de reprovação e parecia vir de todo o lugar ou de lugar nenhum. “Porque fizestes isso, João?”

João olhou em volta assustado e não conseguiu ver nada e acabou por perguntar: “Quem é você e porque eu não consigo vê-lo?”.

Assim como você, eu também me chamo João, e estou bem aqui atrás de você. A voz agora, realmente parecia estar vindo de trás de João Ninguém, e então ele se virou e viu um senhor baixo, devia ter 1.60 de altura no máximo, com uma enorme barba branca.

E como o senhor apareceu ai, João Ninguém perguntou agora bem mais assustado do que antes.

Eu tenho muitos truques, João. Truques que talvez você vá conhecer ou não. Ele respondeu dando um sorriso que parecia meio debochado.

Você é Deus, João Ninguém perguntou.

Deus, ele falou com os olhos vagos como se tivesse se fazendo a mesma pergunta. Ah, é assim como vocês me chamam na terra não é, ele perguntou.

Se for quem eu to pensando que é, é sim senhor. Que lugar é esse, como eu vim parar aqui, o que o senhor faz aqui em pessoa, e porque você se chama João, ele continuou.

Uma pergunta de cada vez, João. Ele disse sorrindo novamente.

Desculpe senhor. Deus, apenas sorriu novamente.

Sobre a primeira pergunta: Esse é um lugar que eu venho muito quando eu preciso ficar sozinho. Um lugar tranqüilo que eu gosto muito. Eu tenho muitos problemas sabe João. Cuidar do mundo não é uma tarefa fácil e sempre tem gente me importunando. Então eu preciso de um lugar para ficar sozinho às vezes. João Ninguém apenas o olhava incrédulo. Não acreditava que estava na frente do próprio Deus e que ele também se chamava João.

A segunda e a terceira perguntas eu vou responder de uma vez só, ele falou. Eu lhe trouxe para cá, porque é um lugar tranqüilo, para conversar com você e lhe mostrar quanta falta você faz na terra.

Eu fazer falta, senhor, perguntou João Ninguém. Mas como isso é possível? Eu já estou há quase um ano sem trabalhar, vivendo à custa da minha mulher. E há mais de três meses eu virei um homem que só faz beber. Não procuro mais emprego e mal dou atenção a minha mulher que não me agüenta mais e a meus filhos que mal me reconhecem mais.

“Eu sei João. Não precisa me contar. Porque eu sei de tudo que aconteceu. Eu acompanho a sua vida desde o seu nascimento. Não só a sua, mas de todo mundo que está na terra. Eu sei também que nesse ultimo ano, a vida não foi justa com você, mas você pouco se esforçou para mudá-la. E se entregou rápido demais. Mas nem sempre a vida é justa meu filho. Nem sempre. Você não é o único que sofre no mundo, tenha certeza disso”.

Mas porque o senhor não fez nada para me ajudar, Deus, porque, ele perguntou.

“Porque eu dei o livre arbítrio a todos. Não posso estar interferindo toda à hora na vida das pessoas. E eu só ajudo aos esforçados, João. Você não estava sendo esforçado e não merecia minha atenção. Outros milhões de pessoas estavam precisando antes. E elas faziam por merecer”.

João Ninguém não sabia o que falar e apenas ficou calado. Realmente ele não tinha se esforçado muito para arranjar trabalho. Depois que foi demitido da oficina por bater no seu chefe, porque não queria receber uma ordem, tentou por alguns meses arrumar outro trabalho como mecânico, mas não conseguiu. Ele sempre foi muito brigão e beberrão. Sua fama já era grande naquela pequena cidade e ninguém queria contratá-lo mais. Acabou perdendo a vontade de trabalhar e toda noite estava nos bares da cidade bebendo com seus amigos para esquecer a vida. Até que um dia era só o que ele estava fazia. Enquanto sua mulher trabalhava diariamente como vendedora numa loja de sapatos para botar comida em casa, e seus dois filhos: Pedro de sete anos e Marcos de dez, apenas estudavam num colégio estadual.

“Antes de mostrar tudo que aconteceu depois da sua morte, eu vou lhe responder a ultima pergunta. Não, João, eu não me esqueci dela. Sobre meu nome não, é?” João Ninguém assentiu.

Ah, todo mundo tem um nome não é, ele perguntou com aquele usual sorriso. Até os Deuses.

Mas um nome tão simples assim?

Mas é um nome tão bonito, não achas, Deus perguntou. Ou você não gosta do seu próprio nome João?

Gosto sim senhor, ele respondeu prontamente. E achou que não deveria tocar mais nesse assunto.

Agora João, vamos ao que interessa, disse Deus. E então os dois como num passe de mágica, sumiram e apareceram numa sala pequena com muitas pessoas vestidas de preto, algumas chorando, outras rezando e outras apenas contemplando o caixão que havia no centro dela, com um olhar vago e triste. Os dois pareciam estar flutuando e ninguém parecia notar a presença deles, apesar de estarem praticamente em cima da cabeça de uma pessoa que João Ninguém reconhecia muito bem. Beto, parceiro de cachaça. E não demorou muito para que João Ninguém reconhecesse o resto das pessoas que estavam ali e também quem estava no caixão. Seus amigos de onde ele trabalhava. Seus parceiros do futebol. Sua mulher, seus dois filhos e muitas outras pessoas. E notou também que quem habitava o caixão era ele próprio. E isso o deu calafrios, porque ele nunca pensou que ele se veria no seu próprio velório.

Isso é só o começo, João. Não vou lhe mostrar a hora em que você foi achado morto, porque nem eu gosto de ver essa cena e também porque o que eu vou lhe mostrar a seguir será suficiente. Então eles sumiram de novo e dessa vez apareceram numa rua bem movimentada. Uma rua que João conhecia muito bem. Era o centro da cidade que ele morava. Ele notou que seus dois filhos pediam esmola no sinal, enquanto sua mulher vendia algumas jóias ali perto. Seu coração bateu tão forte que parecia que ia explodir e lágrimas começam a cair do seu rosto. O que ele achou estranho por ele achava que mortos não choravam nem tinham coração. Ele olhou para Deus a procura de uma resposta, e Deus apesar de parecer entender a sua duvida não achou relevante tira-la. Pelo menos não naquele momento.

Tudo acontece pouco mais de quatro meses depois da sua morte. Com dois meses que você se foi, sua mulher perdeu o emprego. Não conseguia mais trabalhar porque a tristeza tomou conta dela de uma forma que nem eu imaginava que tomaria quando você morresse, e então foi demitida. Seus filhos tiveram que abandonar o colégio para tentar ajudar a mãe a conseguir dinheiro. E agora os três moram de favor na casa da Dona Perpétua, porque não tem dinheiro suficiente para pagar o aluguel. Lembra da Dona Perpétua?

Ele assentiu com a cabeça. Sim, ele lembrava. Dona Perpétua era uma viúva idosa que vivia da aposentadoria do marido e morava sozinha. Ela morava ali perto da casa de João Ninguém e sua esposa Marisa, que sempre ajudava muito Dona Perpétua que já não tinha muitas forças para fazer alguns trabalhos pesados por causa da idade avançada.

“Pois é, João. Depois que você abandonou o mundo, sua família se desestruturou e agora eles vivem praticamente no meio da rua. Você era apenas um João Ninguém como começaram a lhe chamar, mas você era o alicerce da sua família. Sem você eles não sobreviviam. Apesar de tudo eles gostavam muito de você. Você não via, mas quase toda a noite sua mulher chorava me pedindo para que eu lhe arrumasse um emprego. Para que eu lhe tirasse daquela vida sem objetivos. Sua mulher nunca realmente lhe quis fora de casa. Era apenas raiva do momento. Mas como eu disse, eu não poderia lhe colocar para frente da fila. Não seria justo com as outras pessoas. Pessoas estas que lutavam para sobreviver. Eu não poderia fazer isso apenas porque sua mulher queria. Você tinha que querer também. E você não queria”.

João não sabia o que falar, apenas ficou calado ouvindo as palavras de Deus. Ele não sabia que ele era tão importante para sua família mesmo depois de tudo que ele tinha feito. E agora mais do que nunca se sentia arrependido. Queria voltar pra ajudar eles. Tira-los daquela situação que supostamente ele os tinha colocado. Precisava urgentemente voltar.
Ele olhou para Deus e disse: eu preciso voltar, eu preciso voltar Deus. Eu não posso deixar minha família sofrendo desse jeito.

Mas você esta morto, João, disse Deus. Você está morto.

Mas tem que haver um jeito. Porque eu estou aqui afinal. Porque você está me mostrando tudo isso. Apenas para eu me sentir mal, João perguntou furiosamente. Eu não acredito que o senhor seria capaz disso. O mesmo tom de fúria ainda continuava em suas palavras.

Calma, João. Não precisa descontar em mim sua raiva. Eu não tenho culpa. É simplesmente como a vida é. Mas eu vou ajudar sua família. E para isso eu vou ter que te mandar de volta. Eu vou te dar uma segunda chance, João. Uma chance de refazer sua vida. Porque no fundo eu sei que você é uma pessoa boa. E é por isso que estamos aqui hoje.

João deu um grande sorriso e abraçou Deus agradecendo-o. Deus apenas de um leve tapa em suas costas e disse: Mas eu quero que você me prometa algumas coisas.

Qualquer coisa, senhor, disse João todo feliz. Qualquer coisa.

Assim que amanhecer o dia, você vai recomeçar sua busca por um emprego. Vai deixar de beber e brigar e vai começar a dar mais atenção a seus filhos e a sua mulher. Se você não cumprir a promessa, você vai ser trazido de volta pra cá e sua família vai sofrer as conseqüências por sua culpa.

Tudo bem, senhor. Eu vou procurar emprego. Vou dar mais atenção a minha família e vou parar de beber. Quer que eu faça mais alguma coisa, senhor?

Não, João. Por enquanto acho que isso é mais que o suficiente. Adeus e boa sorte. Então, Deus sumiu antes de João Ninguém desejar retribuir o adeus.

João começou a se sentir sonolento e deitou na grama. E então dormiu. Quando acordou, estava deitado em sua cama e o ponteiro marcava meia noite. Andou até o quintal da casa e a corda estava lá pendurada. Será que tudo aquilo tinha sido um sonho ou tinha sido real, ele se perguntou. Será que realmente ele tinha se encontrado com Deus? Tudo tinha sido tão vivido. Mas ele não sabia e nem queria descobrir. Então foi até a mangueira e desamarrou a corda. Jogou ela de lado e voltou para dentro da casa. Tomou um copo com água bem gelada e foi para o quarto. Deu um beijo na testa mulher e prometeu a si próprio, mesmo não sabendo que se aquilo tinha acontecido ou não, que ia cumprir tudo o que tinha prometido no sonho ou em sua rápida morte.

FIM

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